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sexta-feira, 29 março 2024

Residências terapêuticas oferecem tratamento humanizado na reabilitação psicossocial em Curitiba

“Sr. P.L., agora que encontrou sua irmã, o senhor não sente vontade de morar com ela e conviver com outras pessoas da família?”, perguntou a psicóloga. “Não, porque aqui é que é a minha casa”, respondeu o homem. O diálogo entre a profissional responsável pelo programa das Residências Terapêuticas (RT) na cidade, Diana Coutinho, do departamento de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura de Curitiba, e um dos moradores da RT Jardim Paranaense demonstra a essência dessa política pública voltada ao atendimento e bem-estar de “portadores de transtornos mentais, egressos de internações psiquiátricas de longa permanência (mais de dois anos ininterruptos), que não possuam suporte social ou laços familiares” — conforme a definição do serviço na Portaria nº 106/2000, do Ministério da Saúde.

Mais do que o atendimento adequado, humanizado, de acolhimento e cuidados eficazes em si, as residências terapêuticas têm uma rotina de funcionamento o mais próximo possível de uma casa. A preocupação para que seja assim é visível na disposição e escolha dos móveis, na organização dos cômodos e também na relação dos moradores com a comunidade em volta. Os moradores contam com os serviços de profissionais de enfermagem que atuam de maneira multidisciplinar e que se desdobram desde o atendimento em saúde, nos cuidados básicos aos residentes – sendo que muitos já se encontram em uma idade avançada – e também no suporte de reabilitação psicossocial para promover o resgate de uma cidadania que se perdeu no tempo em que eles ficaram internados, além de facilitar a reinserção social dos moradores na comunidade.

“Esse dispositivo é exclusivamente público”, explica a coordenadora do programa das Residências Terapêuticas em Curitiba, Diana Coutinho. “Os moradores não têm ninguém por eles. São dependentes da equipe de profissionais do município para recuperarem a condição de cidadãos de direito”, diz. Esse programa integra a Política Nacional de Saúde Mental. Além dos profissionais da enfermagem que trabalham diretamente nas residências terapêuticas, em equipes que prestam atendimento 24 horas, os moradores são acompanhados pelo Centro de Atenção Psicossocial (Caps) e pela unidade de saúde de referência para cada residência, levando em conta um plano terapêutico personalizado.

Direito de convivência

Curitiba possui seis Residências Terapêuticas, onde vivem 42 pessoas com maior ou menor grau de autonomia e de independência. Destas, cinco residências são do Tipo 1, em que os moradores têm um nível de independência maior em atividades do dia a dia, e uma residência do Tipo 2, com pacientes com grau de comprometimento maior, necessitando de cuidados intensivos em relação à saúde, alimentação e higiene pessoal, entre outros.

Os moradores da única RT do Tipo 2 de Curitiba, instituída no final de 2013 no bairro do Mossunguê, são os últimos pacientes da ala psiquiátrica do Hospital Nossa Senhora da Luz, no bairro Prado Velho. Eles viveram por décadas reclusos em hospitais psiquiátricos por conta de transtornos mentais ou até mesmo por deficiências, que, se fossem tratados atualmente nem demandariam internamento, apenas o redirecionamento do cuidado. Por uma série de motivos, as famílias não deram conta de conviver com eles e, por isso, foram abandonados ou os vínculos familiares e afetivos se perderam. Os diagnósticos, de um modo geral, apontam para transtornos de humor, esquizofrenia, deficiência intelectual, entre outros.

Já moradores nas unidades do Tipo 1 têm maior facilidade de inserção na comunidade, de interação e de convivência.  Eles participam dos afazeres domésticos na medida das suas possibilidades, recebem visitas e também realizam outras atividades fora, como passeios, frequentam o comércio do bairro, atividades culturais e de lazer nos equipamentos públicos e nas administrações regionais da cidade, entre outras. “O trabalho é focado o tempo todo no exercício da convivência e voltado a facilitar a inserção social dos moradores”, conta Diana Coutinho.

O resgate das histórias de vida é outra tarefa difícil de empreender. Algumas pistas desse passado chegam através de sotaques, termos regionalizados que escapam das lembranças, músicas tradicionais e folclóricas cantadas ou alguns recortes de relatos que aparecem e desaparecem com a mesma facilidade de quem, talvez se tivesse de escolher, preferisse nem lembrar da vida que teve no hospital.

Vínculos

“Não tem como não estabelecer vínculos afetivos, pois eles são extremamente dependentes do acolhimento e da atenção da equipe”, explica a psicóloga. “São pessoas que não têm mais ninguém por elas ou outros vínculos que lhes permitam viver em sociedade. As equipes para estes moradores são praticamente as únicas referências”, completa.  “As residências terapêuticas são um grande termômetro de como a rede de saúde dá conta de todos os pacientes de transtornos mentais inseridos na comunidade”, reforça.

A enfermeira Maria de Lourdes Lopes é referência técnica da RT Mossunguê, unidade do Tipo 2, onde vivem 9 moradores, atendidos por 14 profissionais da Secretaria Municipal de Saúde, que prestam 24 horas de cuidado integral e uma prática da enfermagem contínua. Todos os moradores recebem auxílio para se alimentar, tomar banho e para higiene pessoal, entre outras tarefas, e apresentam transtornos de saúde mental que exigem cuidados permanentes.

Ela diz que além do cuidado técnico, os profissionais das residências terapêuticas são movidos por um amor muito grande pelo que fazem. “Os moradores exigem um cuidado contínuo, mas, ao mesmo tempo, não cobram nada. É um trabalho cansativo, mas gratificante. Não tem como se desligar”, completa a enfermeira. Maria de Lourdes costuma agregar à residência terapêutica a ação voluntária de outros profissionais para conhecerem também a realidade dos moradores e poderem contribuir para melhorar seu dia a dia. Já levou cabeleireira, terapeutas, educadores físicos e professores de artes.

A RT Gabineto, residência do Tipo 1, com 7 moradores e 12 profissionais de atendimento, é o lar do prestativo E.C.R., dono de uma simpatia e de uma facilidade de comunicação cativantes. Ele pinta quadros, desenha, ajuda nas tarefas da casa, no cuidado com os demais moradores, na organização, na horta e na jardinagem. Sabe tratar de cada uma das árvores frutíferas do quintal e é sempre aquele que se escala para buscar pizza na esquina quando os moradores resolvem fazer uma atividade diferente. E.C.R. recebe, de tempos em tempos, a visita de um irmão, que reside no Litoral do estado, e adora exibir o rádio no qual ouve seus cantores favoritos: Paula Abdul, Elton John e Olivia Newton John, só para citar alguns.

Cuidado retribuído

É na RT Jardim Paranaense, outra residência terapêutica do Tipo 1, que vive M.I.P., junto com outros 6 moradores. Assim como o E.C.R., ela também é bastante prestativa no auxílio aos 18 profissionais quando se trata do bem estar das pessoas que moram na casa. Especialmente nos cuidados da M.A.R., com quem divide o quarto, e da sua companhia há 12 anos, a cachorra Pretinha. Já fez mais: aos estimados 63 anos, M.I.P. encontra-se hoje mais limitada pela idade e diabetes, embora se mostre sempre lúcida, disposta e alegre.

Ela encontrou Pretinha na rua. A cachorra parecia perdida, abandonada e passou a segui-la pelas ruas do bairro, até ficar latindo no portão da casa. A moradora da residência terapêutica procurou pelos donos em vão. “Procurei dono, procurei dono e não achei ninguém”, conta. “Levei ao veterinário para tomar as vacinas e acabei ficando com ela”, diz. Com o rendimento que recebe dos programas sociais do governo federal, a vaidosa M.I.P. compra seus acessórios, presenteia os amigos e leva a Pretinha ao pet shop uma vez por semana.

As residências terapêuticas reúnem histórias de vida, de superações, de dramas, de profissionalismo e de convivência.

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EDIÇÃO IMPRESSA Nº 116 | MARÇO/2024

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